Quinta-feira, 25 de Janeiro de 2007
Uma noite estranha......
- Então? Como é que vais votar no referendo? – pergunta-me um gajo vestido de branco, ao mesmo tempo que vai coçando a sua longa barba branca e olhando para uns papiros.
- Acho que vou votar....Não? -digo baixinho, esperançoso que fosse essa a resposta que ele queria ouvir.
- Olha lá! Estás a brincar comigo? Não me tentes enganar!!! – grita ele, ao mesmo que todo o céu estremece, e uma carga de água me cai em cima. – Olha que eu sei tudo!!!
- Mas.. – digo, a tremer – O que é que há de tão grave em eu ir votar Sim?
- Cada mulher que aborta impede a renovação de uma alma. – diz-me, já mais calmo e com algum paternalismo – E isso significa mais chatices para mim: A lista de espera continua a aumentar e quem tem que ouvir as reclamações todas sou eu! – diz, já mais agressivo. – E tu não imaginas o que é ter que ouvir e acalmar almas revoltosas, pois não?
- Bom. Eu sou professor. Faço isso todos os dias. – respondo.
- Humm…Está bem. – hesita ele – Mas isso não tem comparação. – diz, para despachar a conversa.
- E já cheguei a dar aulas a miúdos do 9º ano. – continuo.
- Bom…. Mesmo assim. - diz, sentindo-se apanhado pela minha argumentação – Mas aqui o que interessa é o meu trabalho! Não é o teu! – grita novamente, e volta-me a cair água em cima.
- Conversas dessas para alguém que parece ser Santo, não me parecem muito adequadas.
- Tu nunca leste a Bíblia, pois não? Tens uma visão demasiado romântica do que é ser Santo. – diz, enquanto se volta a sentar – Vamos mas é despachar isto. Porque raio vais então votar no Sim?
- Porque acho que as mulheres que abortam não o fazem de ânimo leve, logo não devem ser julgadas. – digo, serenamente - Mas eu sou contra o aborto!
- Deixa-te disso. Se és contra o aborto, porque é que vais votar Sim?
- Porque não é isso que me vai ser perguntado.
- Tu não vais à missa, pois não?
- Não. Mas o que tem isso a ver com a conversa?
- Se fosses, ficarias a saber o que é efectivamente perguntado. Mas tu não queres ser esclarecido, e agora vais ter que pagar por isso. – diz, enquanto vai rabiscando umas notas no papiro.
- Mas eu sou contra o aborto. Aliás, não conheço ninguém que seja a favor.
- Olha lá, o teu pai não é comunista?
- Sim. Mas é contra o aborto e também vai votar Sim.
- Isso não me interessa. Era só uma confirmação.... – diz, com um sorriso sarcástico e colocando mais umas notas no papiro. – Bom. Resumindo. – diz, enquanto me olha nos olhos – És contra o aborto e vais votar Sim. Ou seja, estás lixado.
- Mas e as mulheres que morrem devido aos abortos clandestinos? E as sequelas com que muitas ficam? Ninguém faz um aborto só por fazer. Vamos ainda humilhar mais essas pessoas? Sujeitá-las a mais traumas? Não é melhor dar-lhes condições, para que os mesmos sejam feitos com a mínima segurança, e apostar fortemente na educação sexual? Algo que tanto foi falado, por tantos e tantos partidários do Não, e até hoje nada foi feito. Não são estas razões suficientes, para votar Sim?
- Claro que não. O que te vale são os teus atenuantes. – diz, enquanto vai olhando para o papiro.
- Atenuantes?
- Sim. Para o teu castigo eterno.
- Bom, pelo menos tenho atenuantes. Sempre vivi de acordo com a minha consciência. Tentei tornar melhor a vida dos que me rodeiam. Tentei pôr as pessoas a pensar por si e a assumirem as suas responsabilidades. Fiz…
- Chega! Isso não me interessa para nada. – interrompe-me ele.
- Então, mas não são esses os meus atenuantes?
- Claro que não. Nós aqui em cima, medimos tudo apenas pelo único pecado que existe. E é sobre esse que tens atenuantes.
- Agora perdi-me.
- Sexo, pá! Tenho que te explicar tudo? Os teus atenuantes têm a ver com sexo. – diz, novamente irritado, o que me valeu mais uma molha.
- Mas….o que queres dizer com isso?
- Quero dizer que as tuas performances sexuais, enquadram-se perfeitamente no que são os requisitos mínimos para se ser Santo.
- Os Santos fazem assim tanto sexo?
- És um gajo engraçado. – diz ele, enquanto se ria – Claro que não. Muito pelo contrário. Estás ao nível deles.
- Se calhar é melhor acabar a conversa. -digo, meio aborrecido.
- É um elogio, pá. Consegues ter performances sexuais abaixo de certos homens da religião.
- A culpa não é minha. – reajo eu, chateado.
- É pois. Não sejas modesto. É isso que te safa.
Acordei a suar e em pânico. E o que acontece quando se tenta partilhar este pesadelo, com a cara metade?:
- Se me voltas a acordar para me contares baboseiras, garanto-te que ainda te vais transformar em Santo, mas é ainda enquanto estás vivo.
De
marisa a 26 de Janeiro de 2007 às 13:24
Excelente!
Nota máxima, senhor professor. Ou direi colega?
Um abraço
Marisa
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